Primeiro
sonho:
Gritos e gargalhadas misturavam-se. Um grupo de crianças tomava banho
num riacho. De lá enxergava-se o alto paredão de calcário dourado que servia de
fundo de proteção à aldeia, meia dúzia de choupanas com teto de folhas de
palmeira. Duas colunas de rala fumaça assinalavam fogueiras na entrada de uma
gruta que parecia uma meia-lua preta.
Um dos meninos, mais agitado, era e
corria na margem, sem parar. Pulou para mergulhar no rio e, quando se esticou
no ar, pôde-se ver uma grande cicatriz que lhe cruzava a coxa direita. Segundos
depois, reapareceu de olhos fechados, os cabelos longos, pretos e brilhantes
como verniz encobrindo-lhe o rosto, a boca jorrando água como se fosse um
chafariz.
Em pé, com a água na altura do peito,
ele começou a bater na superfície do riacho com as mãos abertas, atirando água
na direção de uma menina que, sentada numa pedra da margem, mordia uma fruta.
Ao receber a ducha, deu um pulo. Era da cor do café ralo, pernas finas e
longas, cabelo cheio, comprido e liso, nariz curto, lábios grossos e um pouco
salientes: sinal de sorriso fácil. Num dos braços havia uma cicatriz com a
forma de um trevo. Usava um colar de sementes vermelhas e pretas e, no braço
esquerdo, onde estava a cicatriz, um bracelete adornado com pequenos dentes de
macaco. Na cintura prendia-se uma tanga curta, feitas de fibras.
O menino continuava dando palmadas na
superfície do rio, levantando cortinas de água:
- Toma, Nia!
Nos braços, adornos semelhantes aos da
menina. Só deixou de espalmar a água quando lhe acertou nas costas a fruta que
comia, gritando com raiva:
- Para, Aur!
O
menino dobrou o corpo para trás, mergulhando a cabeça na água para arrumar o
cabelo. Na testa tinha uma fita vermelha na qual se prendiam dentes
esbranquiçados. Destacava-se um, grande e retorcido, de queixada, o avantajado
e selvagem porco-do-mato.
Meu amigo acordou sobressaltado. Em sua
mesa de estudos havia uma caixa com sementes furadas, pretas e vermelhas, e
fitas de fibras nas quais haviam sido fixados alguns dentes de animais como
macacos, porcos-do-mato, veados... Pegou a caixa aonde colocara o esqueleto de
menina e começou a examinar o crânio. Ela devia ter o nariz curto e uma espécie
de sorriso contínuo, pois os dentes de cima se inclinavam um pouco para a
frente. Observou depois, demoradamente, os ossos dos braços, Num deles, o esquerdo,
notava-se um calombo: fora quebrado.
A essa altura, meu amigo avistou no
chão um envelope que o carteiro colocara sob a porta. Carta do exterior, enviada
por um laboratório especializado em exames coplexos. Traduzo agora algumas
linhas da carta. Após relatar as análises que fizeram e escrever sobre
problemas de herança, “Os exames do fragmento de osso pertence ao esqueleto AU
indicam que o referido esqueleto é do sexo masculino, enquanto o esqueleto NI é
sexo feminino. Os testes realizados levam a concluir que os dois eram irmãos”.
Quando me contou, meu amigo arqueólogo
ainda estava assustado. Era quase inacreditável! Em cada osso daqueles dois
esqueletos de que tanto gostava colocara letras para identificá-los. E elas
coincidiam com as primeiras dos nomes que ouvira no sonho. A partir de então,
já tinham nome: Aur e Nia.
Segundo
sonho:
Naquele dia, o trabalho fora cansativo.
Meu amigo passara horas escrevendo no computador. Adormeceu na poltrona e teve
um sonho muito agitado.
Os homens abandonaram a aldeia muito
cedo para caçar. Ainda havia estrelas. Mas tarde, quando a baixada estava
tomada pela névoa, como se estivesse sepultando algodão, as mulheres e as
crianças começaram a caminhada. Iam até as grutas de grande planície.
No acampamento do paredão ficaram quatro
velhas e dois velhos. Peixe seco, coquinhos, um pouco de mel e os caracóis que
iriam apanhar eram alimentação suficiente até que todos voltassem, dois dias
depois.
Outro grupo caminhou rapidamente, em
fileira, durante toda a manhã. Fora os espinhos fincados nos pés de alguns,
nada aconteceu. Apressaram o passo quando chegaram a uma esplanada, na frente
de um maciço calcário, onde se via a entrada negra de uma gruta, boca enorme
sempre aberta.
Atrás de uma grande pedra, na entrada,
sob uma esteira e galhos de árvore, os homens deixaram um veado e um caititu
que haviam caçado. Os meninos espantaram alguns urubus que, sentindo o cheiro
da morte, tinham pousado na esteira. As mulheres começaram a arrumar o salão de
entrada da gruta, onde a claridade era pouca, como a do entardecer. Nia e as
mais duas meninas foram apanhar água, levando na cabeça cuias que pareciam metades
de uma grande abobora escura.
Aur recolheu folhas e galhos secos do
chão. Depois sentou-se na entrada da gruta e tirou do embornal um pedaço de
madeira plana, de dois palmos de comprimento, que apoiou no chão à sua frente.
Na superfície da madeira viviam-se pequenas depressões escuras. Entre os galhos
que apanhara no chão, o menino escolheu o mais reto e em uma pedra raspou uma
de suas pontas até ela ficar igualada. Num dos buracos da madeira, colocou a
ponta que raspara e começou a esfregar as mãos girando, sem parar, o galho
entre elas. Pouco depois, começou a sair uma tênue fumaça branca do pedaço da
madeira, e um anel de brasa apareceu em volta da ponta do galho que girava.
O menino se ajoelhou, dobrando-se sobre
a madeira, e, enquanto soprava, colocou sobre ela folhas secas e gravetos.
Continuou soprando, fazendo bico com os lábios, até aparecer uma chama fraca
que estalava como papel celofane amassado. Quando o fogo aumentou, retirou o
pedaço de madeira, cuspiu nele e, com o dedo, apagou rapidamente a brasa que
aparecera no buraco.
Ao contar o sonho, meu amigo mostrou-me
aquele pedaço de madeira com depressões escuras e arredondadas na superfície,
cuja utilidade até então lhe era desconhecida. Colocou-o na lupa. No fundo e
nas beiradas dos buracos, reconheceu o brilho e a coloração característicos do
carvão. Finalmente descobrira a tábua de fazer fogo que, no sonho, vira Aur
usando.
Enquanto meu amigo falava, senti
vontade de observar algum objeto na lupa que estava sobre a mesa. Retirei de
uma prateleira um fragmento de cerâmica amarelada e comecei a examiná-lo. Fiquei
maravilhado, pois as lentes de aumento permitiram-me observar, o barro,
impressões digitais, os finos ricos nos dedos de quem trabalhara a argila.
Chamei meu amigo para que observasse minha descoberta e comentei, empolgado:
- Já pensou se essas
impressões fossem de alguém da aldeia?
- Seria interessante – Mas
é impossível. Esse pedaço de cerâmica é de uma outra escavação. Moradores da
minha aldeia ainda não conheciam a cerâmica. Só surgiu no Brasil há
aproximadamente dois mil anos.
- Vivendo e aprendendo –
respondi, sem graça, disfarçando meu desencanto.
Recoloquei o fragmento na cerâmica eu
seu lugar e vi que nele haviam sido escritos, e nanquim, alguns números e duas
letras. Todos os objetos do laboratório tinham sido identificados da mesma
maneira. Num arquivo, havia milhares de fichas ordenadas e encontrei facilmente
a que correspondia ao pedaço de cerâmica. Nele havia anotações como o ano e o
local em que a peça foi achada, nível onde fora encontrada, entre outros. O
trabalho que estava nesse arquivo era maior que escavar e preparar cada objeto
guardado naquele laboratório...
Último
sonho:
Insisti várias com meu amigo para que nos contasse o sonho inteiro.
Sempre dizia não e mudava de assunto. Não houve jeito: só narrou o final.
Na esplanada em frente à gruta, ardia
uma grande fogueira que amarelava a noite. Os moradores estavam sentados em
círculo. Ninguém falava. O Minhoquinha chorava. Dentro do círculo, perto do
fogo, havia duas macas, semelhantes a andores de profissão.
Com fogo alto, via-se que estavam
cobertas por espessa camada de folhas. Aos poucos as chamas diminuíram. Os
moradores continuavam em silêncio e imóveis: parecia que do chão haviam brotado
estátuas sentadas. Ao desaparecerem as chamas, a escuridão inundou a esplanada.
Todos olhavam fixamente a mancha vermelha de brasas que restara da fogueira. Às
vezes, com um pequeno estalo, subiam borbulhas avermelhadas que se desfaziam no
ar.
Depois homens levantaram-se e
caminharam devagar até as macas, onde apanharam uma braçada de folhas.
Dirigiram-se depois até a fogueira e com elas começaram a cobrir as brasas.
Várias vezes repetiram a mesma ação, até que não se viu mais nenhuma
brasa.elevou-se então uma rala coluna esbranquiçada de fumaça em direção à Lua, que parecera
acima do paredão do acampamento. Não havia vento. Aur, quando olhava para o céu
e via as estrelas piscando, pensava que eram vaga-lumes parados lá no alto, e
que a Lua espantava os que estavam perto dela.
Quando a fumaça aumentou, todos se
levantaram, esticaram os braços para o ar e começaram a gritar juntos, em
triste ladainha:
- Vão!Vão!Vão!...
Enquanto meu amigo me contava essa
passagem de sonho, percebi que sua voz falhava e vi seus olhos brilharem.
Nas macas já sem folhas, podiam-se ver,
como que adormecidas, duas pessoas.
-Vão!Vão!Vão!...
As palavras repetidas eram como um eco
dolorido. E os braços de todos, agitando-se sobre as cabeças, pareciam empurrar
o espírito de alguém para o alto, juntamente com a fumaça. Quando ela se tornou
rala, os dois homens colocaram lenha sobre as folhas. De novo, as chamas
amarelaram a escuridão. Viram-se então, claramente, os dois corpos: eram Aur e
Nia. Dormiam? As chamas pintavam sombras tremidas naqueles dois rostos,
parecendo às vezes que se mexiam.
Duas grandes cuias foram colocadas no
chão ao lado das macas. O silêncio era tão intenso que permitia ouvir o
longínquo coaxar rouco dos sapos lá do rio.